sexta-feira, 23 de julho de 2010

Do alto


Um metro e sessenta e três e meio. Essa é a minha medida numa sexta-feira em que acordo cansada. Na segunda, provavelmente terei crescido oito ou dez centímetros. Preciso ser alta umas três ou quatro vezes por semana.
Não me faltam opções. Saltos finos, grossos, redondos, quadrados, retos ou curvos, com ou sem plataforma, sensuais ou clássicos, em modelos abertos ou fechados. O salto alto, sim, é o melhor amigo de uma mulher, já que os diamantes não são para qualquer uma. E os diamantes, ah, os diamantes, não deixam nenhuma panturrilha musculosa num piscar de olhos.
Quando acordo me sentindo glamurosa, coloco um salto pra ficar de acordo. Quando acordo exausta, coloco um salto pra levantar o ânimo. Depois de um fora, o salto é perfeito para disfarçar o moral lá embaixo. Distraído com uma perna bem torneada, quem irá notar um coração destruído?
Em cima de um salto não sou alguém que acorda exausta todas as manhãs, nem a que se preocupa em sortear a conta em atraso do mês. Em cima de um salto, ergo a cabeça e sigo em frente. Não ando: flutuo. Passeio, fluida, por uma elegante irrealidade, povoando em câmera lenta o imaginário de quem fica.
Não paro para olhar, mas sinto que isso acontece. Por alguns segundos, até fecho os olhos para imaginar as cabeças girando noventa a cento e quarenta e cinco graus em minha direção. Mas logo os abro de novo, pois os saltos podem ser perigosos. E sigo em frente, cabeça erguida, humilhando com charme quem fica para trás. E o que caminha comigo é a fantasia de cada um. Com direito a trilha sonora.
Isso, se eu não cair.
Porque aí a imagem fica mais lenta e merece replay.
Foi o que aconteceu outro dia, quando retornei lânguida e loira à mesa que eu ocupava num restaurante. Eu usava uma inocente sandalinha de salto médio, que parecia inofensiva. Mas a tábua corrida e a cera haviam se unido contra mim. E lá se foi a minha sandália patinando pela madeira encerada. E o que virou noventa graus foi meu pé direito, que me levou a deslizar alguns metros, apoiada sobre um tornozelo torto que fazia as vezes de planta do pé. E o movimento em slow motion que não era dos pescoços alheios, mas das minhas pernas se abrindo em desengonço. 
Uma cena digna dos programas de fim de domingo. 
Em minha memória, aqueles segundos parecem ter durado alguns minutos. Ainda ouço o som das cadeiras pesadas e da mesa que arrastei comigo, numa queda-dominó interminável.
Se foi inesquecível para mim,  que dirá para os outros. Está certo que doeu mais em mim, especificamente na alma, já que o tornozelo ralado e o joelho direito só me levaram a mancar algum tempo depois.
Gosto de me lembrar do momento em que abri de novo os olhos e vi um senhor de cabeça branca, de prontidão, preocupado em verificar quantos e quais tinham sido os estragos. Quando ele finalmente me alcançou – custei a parar –, eu estava como o John Travolta ao final de uma coreografia em Saturday Night Fever. Com uma diferença: eu usava um vestido tomara-que-caia, cuja saia em lápis subiu até o meio da coxa durante a queda.
Gosto de imaginar cada segundo daquela longa cena. De me lembrar da demora em enxergar alguma coisa e de quando eu finalmente olhei para cima e vi aquele senhor. Gosto de recordar a expressão dele. E me pego com um risinho no canto da boca, a reviver pequenos flashes daquele episódio ridículo que passa a integrar o meu inventário de casos para contar.

Cris Guerra

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