Acordou sentindo-se diferente, com um gosto diferente na boca. Talvez o "acre" que Drummond tanto falasse... Não sabia do que se tratava, porém. Ressaca não era, pois não bebia. Indigestão muito menos, pois sentia-se ótima, sem enjoos ou cólicas. Um pouco cansada sim, dormira mal a última noite, mas noites mal-dormidas não deixam gostos estranhos na boca, até onde ela sabia. Enfim, não soubera explicar o que sentia, logo não era nada. Mas era. Aquilo a incomodava. Não conseguir definir o que sentia era não saber a solução pro seu problema, ou pelo menos por onde começar a procurar. Sair de casa com uma inquietação dessa em plena segunda-feira não era nada fácil. Desejou na hora ser fanática por horóscopo, assim ligaria pro escritório e avisaria não ser possível ir hoje ao serviço, "porque os astros assim a aconselhavam". Mas não faria isso, nunca conseguiria enganar alguém. "Você é muito honesta", comentou uma amiga, de forma banal, e mais como um elogio que qualquer outra coisa. Mas soava como uma aguilhoada no peito, como se lhe mostrassem sua pior face. Era honesta demais, sincera demais. Era em nada misteriosa, sinuosa, esperta. Era tão honesta que não saberia fingir estar bem, nem fingir estar mal por um motivo qualquer que fosse plausível, bom, justo, real. Como explicar a outros que acordara sentindo um gosto diferente na boca, e isso lhe causava mal-estar? Loucura em pessoas sãs tem limites, mas isso era ultrapassá-los todos, ela bem sabia disso. Então era isso: ela enlouquecera, pura e simplesmente, da noite pro dia, enquanto dormia. Por isso o gosto estranho - deve ser diferente o gosto da boca dos loucos. Isso era um começo. Ela era honesta demais pra fingir loucura. Se sentia-se louca é porque realmente o era. Não conseguiria viver mais entre os sãos, pois não saberia fingir ser como eles. contaria segredos que lhe foram confiados, diria verdades inconvenientes, falaria coisas que fariam sentido só pra si mesma. Tornaria-se insuportável. Era isso, o começo. O gosto que sentia no fundo da boca, entalado na garganta, nunca conseguiria fingir aquilo. Aquilo era real pra ela, sua nova realidade, sua nova vida. Respirou fundo. Ligaria pro escritório. Enquanto ouvia o telefone chamando, podia ver um sapato preto de salto alto e bico fino, andando até o aparelho. Podia ouví-los - clac, clac, clac. Um "alô" ressoou em sua mente, fez eco. Empalideceu, se perdeu. Só conseguiu dizer uma palavra:
- Enlouqueci.
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