As noites de insônia, em pleno verão que aprisiona a cidade na onda de calor, não costumam ser profícuas. Ao contrário, geralmente estendem-se lânguidas e vagarosas sobre a cama do estio, fitando o céu sem estrelas, à espera do dia seguinte. Há certas noites, como a de hoje, por exemplo, quando me sento para escrever a crônica, em que tudo é silêncio. Não há vento e a cidade parece ressentir-se do calor extremo. Não há nada, nem ninguém nas ruas. Na varanda, olho os mistérios do cosmo e penso no quão facilmente nos esquecemos de que nosso velho planeta não ocupa o centro dele.
Como se a razão entendesse Copérnico, mas a emoção continuasse rendida ao geocentrismo de Ptolomeu. Enfim, divagações solitárias madrugada adentro, frutos de uma mente que não consegue operar as inúmeras funções necessárias para que simplesmente eu consiga adormecer.
Deixei as estrelas e vim para o computador, onde naveguei um pouco, atrás da inspiração para a crônica. Buscando a palavra, a história ou a saudade que me tome pela mão e me leve ao mundo das palavras. Visitei alguns poetas de que gosto, outros que conheço pouco e que ainda quero conhecer. Deveríamos todos ler um poema por dia. As escolas deveriam iniciar seus trabalhos com um poema antes da maratona de aulas. Faz bem ao coração. Durante anos alimentei a fantasia de que as cidades deveriam operar emergências poéticas. Estabelecimentos que nos devolvessem a capacidade de sonhar e adivinhar novos mundos, e que existiriam em cada bairro, abertos noite e dia, devolvendo humanidade aos pacientes. Na falta desta utopia, a internet é uma boa opção para quem, como eu, gosta de visitar a poesia regularmente.
Enfim, já tarde, bem tarde, acabei visitando Christina Rossetti, poetisa romântica inglesa que nos deixou uma obra delicada, de devoção e entrega. Rossetti foi deixada de lado pela onda modernista, mas na décadade 70, o feminismo a trouxe de volta ao panteão das letras. Cometi a heresia de traduzir um soneto dela, porque senti vontade de dividi-lo com vocês e porque trabalhar me ajuda a atravessar a noite, sem a desagradável sensação de ser o único ser acordado na cidade. A tradução não é grande coisa, mas a intenção é das melhores. De modo que a última página de hoje, para os leitores, encerra-se com poesia e, nos dias que correm, acreditem, a poesia é tão importante como o ômega 3. O corpo vai deteriorar-se mais cedo ou mais tarde, mas as centelhas de inspiração avançam pelo tempo, como a luz acesa pelo poeta. Ao soneto, então:
Aqui pensando, em tudo o que perdi,
No que teria sido e jamais será,
Tua excelência vem me assegurar,
Que não sou merecedora de ti.
A mágoa é minha, que teimo em cair,
Que teimo em morrer, que teimo em deitar,
Querendo encolher, querendo chorar
Fitando a parede pra não mais fugir
E ainda assim, porque há esperança,
Rasgando a noite, o amor avança
E luta até que amanheça o dia,
Quando, enfim, esgotada, entrego o poder
E assisto a meu coração florescer,
Pronta a aceitar que por ti morreria.
Miguel Falabella é ator, diretor, dramaturgo e autor de novelas
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